Os frutos da Volta do Campo
Eis que o choro retumba pelo quarto branco, e a aventura da vida se principia. O ser aporta nessa grande casa azul uma vez mais, lançando-se às experiências da matéria, com direito a todas as suas vicissitudes e regozijos. Ele chega para colher ensinamentos, unir pontas soltas e, acima de tudo, entender um pouco acerca das mecânicas de si mesmo. Abre-se, assim, um novo capítulo no livro de sua existência – uma obra em eterno desenvolvimento, de enredo pregresso desconhecido, costurado em passagens que se perdem pelo torvelinho das eras.
É exatamente assim a história do IBACEMA – Casa da Volta do Campo: um capítulo a mais de trabalho e aprendizado na caminhada de tantos e tantos espíritos afins. Se a gênese de nossos vínculos consiste-se numa tarefa de difícil precisão, a determinação do início das trajetórias que culminaram na criação desse centro de caridade é, portanto, igualmente imprecisa. Sabe-se, no entanto, que um dos trechos dessa trama começou a desenvolver-se num convento da Alemanha, em meados da década de 1910.
A “Volta do Campo”
As crianças que brincavam ao redor de um mosteiro, localizado numa cidade incerta da Alemanha, acostumaram-se a ver a mesma cena: diariamente, uma das freiras deixava o claustro e ia colher frutos nos bosques que verdejavam naquela região. Ao retornar, ela sempre contornava o campo no qual a meninada se divertia e lhes presenteava com balas e guloseimas. A gentileza da Irmã, com o tempo, rendeu-lhe a simpatia das crianças e um carinhoso apelido. Quando a freira apontava na estradinha, os meninos e meninas prontamente corriam em sua direção, saudando-a em coro: “Ai vem a Volta do Campo!”.
Em 28 de julho de 1914, o Império Austro-Húngaro declara guerra à Sérvia e lança bombas contra a capital, Belgrado. Começava ali a Primeira Guerra Mundial, com participação ativa da Alemanha no conflito. O território germânico, no desenrolar dos quatro anos seguintes, tornou-se palco dos combates e foi severamente atacado pelas tropas inimigas. Em determinada ocasião, um bombardeiro desabou sobre os telhados da cidade onde as freiras residiam, causando pânico em toda a população. Um grupo dessas irmãs, em meio às explosões e ao desespero, procurou refúgio nos porões do convento. A medida, porém, mostrou-se inócua: não houve escapatória, e todas acabaram falecendo.
Juntas de novo
Findado esse capítulo em suas histórias, uma outra página começou a descortinar-se para as freiras alemãs no mundo espiritual. Lá, unido outra vez, o grupo decidiu dar continuidade ao trabalho de caridade realizado na última encarnação e iniciou o desenho de um projeto que se concretizaria no plano material – agora em terras brasileiras. Esse intento demandaria o retorno à matéria por parte de algumas dessa irmãs – e uma delas, em especial, ficaria responsável pelo intercâmbio entre as equipes de ambas as dimensões.
Nascida em 12 de junho de 1932, a porto-alegrense Nelly Fracasso recebeu a incumbência de atuar como mediadora entre os obreiros de cá e os colaboradores dos planos sutis. Para essa finalidade, ela foi equipada com potentes dons mediúnicos. As faculdades de Nelly afloraram ainda na adolescência, causando-lhe uma série de percalços – naturais, em face da desinformação sobre o tema. Numa ocasião, por exemplo, a família da moça recorreu ao auxílio de um exorcista para tentar estancar os fenômenos por ela protagonizados. Mas o padre, ao entrar na residência da médium, foi recebido com um banho de água sobre a sua cabeça – despejado sabe-se lá de onde e por quem. Surpreso e apavorado, o vigário fugiu e desertou do serviço.
O episódio demonstrava, tão-somente, a latência da mediunidade de efeitos físicos – um dos diversos recursos dos quais Nelly dispunha e que depois foi empregado em sessões voltadas para a saúde. Entretanto, até essa faculdade ser refinada, a casa da família seguiu sendo acossada por eventos paranormais – como pedras frequentemente atiradas contras o telhado, e louças que se estilhaçavam sem ninguém tocá-las.
IBACEMA
As atribulações iniciais sofridas por Nelly Fracasso foram sanadas com o auxílio prestado por pessoas já ligadas ao estudo e à prática do espiritismo. Por intermédio delas, a médium passou a frequentar sessões organizadas num conjunto do Edifício Fronteira, na Av. Borges de Medeiros, centro de Porto Alegre. Lá, Nelly teve suas primeiras experiências com a psicografia e também protagonizou fenômenos de materialização – fazendo surgir objetos diversos, como discos de ebonite, folhas de papel e até uma trança de cabelos verdadeiros, pertencente à entidade que se apresentou como Irmã Maria. Essa peça, aliás, segue até hoje no espólio da casa.
A participação junto ao grupo espírita ajudou Nelly a compreender não só a sua mediunidade, mas também a tarefa que lhe cabia exercer através dessas aptidões. E o consórcio de todos esses irmãos encarnados consolidou uma etapa fundamental do plano traçado no astral, resultando no surgimento do Instituto Beneficente de Amparo à Criança e à Mãe Abandonada (IBACEMA) – CASA DA VOLTA DO CAMPO, criado em 16 de setembro de 1961.
A instituição foi montada com o intuito de oferecer um abrigo transitório para mães e filhos em situação de vulnerabilidade – e teve os seguintes fundadores: Geneza Garcia Munari, Gen. Floriano de Oliveira Faria, Altair Bandarra, João Batista Rozas, Eloha Rozas, Ary Correa Pinto, Castorina Correa, Anita Correa Pinto, Aldemar Correa, Nelly Fracasso, Anisia Silva, Diotildes Macedo Goulart, Ilma Cravo, Walter de Lima Cravo, Hilda Bergallo e Dr. João André Bergallo. A família Bergallo, inclusive, doou o terreno onde a sede seria futuramente construída – durante as décadas de 1960 e 1970 –, no bairro Tristeza.
Em paralelo ao apoio dedicado às mães, a casa iniciou suas atividades na seara de atendimento espiritual. E, então, Nelly Fracasso pôde cumprir o propósito de fazer-se, literalmente, um elo entre as duas frentes de trabalho, fluindo sua mediunidade através da incorporação das freiras alemãs desencarnadas. Ao menos aqui, os sobrenomes de pronúncia complexa foram deixados de lado. As irmãs, para prestar a caridade, optaram por apresentar-se com nomes singelos – como Iemanjá, Maria, Ciganinha, Dama das Frutas, Dama das Flores, Baianinha, Bailairina e, claro, Volta do Campo. Todas elas assessoraram Nelly até os últimos dias de sua missão, encerrada em 20 de março de 2013, com o desencarne da médium.
O trabalho nunca se encerra
A tarefa da instituição, no entanto, ainda está longe de terminar. Atualmente, a casa identifica-se como um núcleo universalista, aberto a diferentes vertentes do conhecimento e da prática espiritual. Os desígnios do plano superior são transmitidos de maneira constante, através da mediunidade dos trabalhadores que seguem regando a semente plantada por Nelly Fracasso – sob coordenação de Irmã Maria, responsável pelo gerenciamento das atividades no astral.
Ao longo desses 54 anos de atuação, não foram poucos os que encontraram no IBACEMA – Casa da Volta do Campo um refúgio em meio aos bombardeios da vida. De um lado e de outro, diariamente, intensamente, o triângulo azul brilha como um farol aos “viajores de muitas romagens”, quase sempre confusos pelas linhas tortas de seus próprios enredos.
Oxalá, essa rica história de abnegação e caridade ainda tenha infindáveis capítulos pela frente. E que a Volta do Campo nunca pare de dar e colher seus frutos.
Emanuel Neves